Eça de Queiroz

     Quando ele, há alguns anos, soltou os primeiros vagidos nos folhetins da Gazeta de Portugal, houve antigos escritores cheios de circunspecção que morreram de ataques apopléticos!

     Eça de Queiroz era um inspirado estranho que vinha, no concerto ameno da literatura familiar, tocar uma nota desusada quase incompreensível para muitos espíritos educados no amor e melancolia.

     Ele acabava de percorrer a Terra Santa; sentara-se a cismar no Jardim das Oliveiras, e desse jardim não trouxera simplesmente a crença que constitui o fundo único de tantas declamações românticas; do Jardim das Oliveiras arrancara uma pernada com que principiou a desancar a antiga retórica do país, destronando os velhos tropos e lançando os fundamentos daquele estilo fotográfico que é o seu grande poder e uma das suas grandes glórias.

     No Oriente não viajara só. A memória de Chateaubriand acompanhara-o, e Lecomte de Lisle e Charles Baudelaire, que então eram triunfadores, fizeram com ele o percurso da Terra Santa. Desta camaradagem estranha resultou a original feição que Eça de Queiroz imprimiu nas figuras bíblicas tão nossas conhecidas e que então, pela primeira vez, se apresentavam diante de nós falando uma linguagem meia apocalíptica e meia humana, que estava muito longe de ser a linguagem oficial do velho cristianismo clássico.

     O destino fez dele em seguida administrador do concelho de Leiria. Assim como o Jordão lhe revelara a antiguidade, o Lis revelara-lhe a realidade. O místico sublime morrera; principiava o autor do Crime do Padre Amaro. O Eça de Queiroz de hoje data daquele decreto de nomeação, e é porventura ao senhor Bispo de Viseu que nós devemos algumas obras-primas modernas!

     O vidente transformou-se num anatomista. Dentro da sociedade portuguesa existiam coisas de que alguns já teriam suspeitado mas que ninguém ainda trouxera claramente à superfície. O Libaninho, a criada Juliana e o conselheiro Acácio foram então expostos à luz do dia, em toda a hediondez do seu organismo, e dissecados pelos processos simples e sinceros que assinalam a derradeira fase literária do nosso tempo.

     A colaboração das Farpas com Ramalho Ortigão não constitui para Eça de Queiroz um título de glória inferior ao que lhe concedem os seus romances. Nessa dança macabra da fantasia há verdadeiros arrojos de funambulismo literário. Nunca em Portugal se haviam realizado tais jogos malabares de graça e de bom senso, fazendo girar no espaço, num círculo vertiginoso, os ridículos e os preconceitos duma sociedade enferma e estupefacta.

     Nos últimos tempos Eça de Queiroz tem vivido em Inglaterra. O seu estilo prismático em que há todos os tons do colorido e todas as vibrações do som, não tem de forma alguma sido prejudicado pela fria serenidade das paisagens britânicas. A palheta do romancista está sempre iriada das mesmas cores nítidas e penetrantes e a disciplina dos seus processos ganhou na convivência dos metódicos paisagistas ingleses a suprema ciência de fazer, dum modo terminante, viver a natureza nas páginas dos seus livros.

     Estilista que dê a impressão mais exacta e flagrante dificilmente se encontrará. A sua linguagem compõe-se de todos os elementos de glótica e de todos os coloridos do arco-íris. Não se molha com mais simplicidade, com mais graça e mais talento, o bisturi de Balzac na palheta de Corot!

     O escritor tem o poder dum gigante; o homem tem as puerilidades duma criança. Aprendeu os segredos recônditos das paisagens à força decorre por elas, de se revolver pela terra, de se rebolar pelas flores, chapinhando nos regatos, baloiçando-se nas árvores e apedrejando os Faunos. É assim que ele bebe a sua força e aspira a plenos pulmões o sopro vivificador que resvala, como uma aura gloriosa, do primeiro ao último capítulo dos seus livros.

     Destes festins familiares com a natureza traz sempre um quinhão de seiva que avoluma dia a dia as suas criações. Artista supremo, todos os dias ao erguer-se da cama dá um toque de buril na sua obra. O Crime do Padre Amaro nasceu com cerca de cem páginas e já chega a setecentas. O Primo Basílio em cada edição nos dá um novo detalhe recôndito dum bosque ou duma alma.

     A primeira fase literária de Eça de Queiroz definiu-a Guerra Junqueiro assim: – a epilepsia do talento.

     Hoje, memorando as funções oficiais do eminente romancista, e determinando o papel preeminente que lhe está reservado nas letras portuguesas, podemos, se nisto não vai ofensa às conveniências burocráticas, denominá-lo desta forma: – O primeiro Cônsul.


João Rialto       



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